Opinião: A ridícula ideia de não voltar a ver-te, de Rosa Montero

A ridícula ideia de não voltar a ver-te
Rosa Montero

Editora: Porto Editora

Sinopse: Quando Rosa Montero leu o diário que Marie Curie começou a escrever depois da morte do marido, sentiu que a história dessa mulher fascinante era também, de certo modo, a sua própria história.

Assim nasceu A ridícula ideia de não voltar a ver-te: uma narrativa a meio caminho entre a memória pessoal da autora e as memórias coletivas, ao mesmo tempo análise da nossa época e evocação de um percurso íntimo doloroso. São páginas que falam da superação da dor, das relações entre homens e mulheres, do esplendor do sexo, da morte e da vida, da ciência e da ignorância, da força salvadora da literatura e da sabedoria dos que aprendem a gozar a existência em plenitude.

Um livro libérrimo e original, que nos devolve, inteira, a Rosa Montero de A Louca da Casa – talvez o mais famoso dos seus livros.

Opinião: Existem livros que, uma vez lidos, deixam uma marca tão indelével em nós que se torna imperativo tomar alguns momentos como nossos, quase em tom de luto respeitoso pelo seu fim. Nunca antes tinha lido uma obra de Rosa Montero, tornando A ridícula ideia de não voltar a ver-te o meu primeiro contacto com a sua escrita. Nem sequer é bem um romance, mas antes uma espécie de biografia-autobiográfica, cruzando o seu passado com o de Marie Curie. Através do registo fascinante da vida desta que foi Prémio Nobel da Química e da Física, a escritora dá-nos não só a sua visão sobre os acontecimentos históricos como entrelaça o seu sofrimento com o dela nos devidos momentos.

Começando pela edição física desta obra, não poderia não mencionar o facto de estar belíssima, com uma capa reforçada, um trabalho fotográfico cuidado e ainda um separador de tecido integrado, da cor das letras da capa. Gostei do detalhe de a Porto Editora ter dado cor à saia da figura na capa, em oposto ao cinzento quase total da edição original, tornando-a numa das mais bonitas e bem sucedidas capas que tenho encontrado na Literatura. Existe uma simplicidade e um jogo entre a sensibilidade e a força tão patentes na conjugação das cores e no desenho em si, que a conjugação com o texto reflecte uma harmonia de contexto e de expressão visual. 

A escrita, estrondosa. Uma capacidade única de quem, inequivocamente, já sentiu um mundo inteiro em si mesma. Mesmo Marie Curie tendo uma história controversa, dados os altos e baixos na sua vida, a forma como Rosa Montero a vai caracterizando deixa-nos antever uma mente aberta, um entendimento sem julgamento, mostrando um respeito e admiração por quem, como ela, perdeu alguém de forma, poderei dizer, ridícula. Esta perda, pretexto para nos conduzir pelos meandros da personalidade de Marie Curie, é o catalisador supremo das observações mais incisivas, onde a realidade é exposta de forma tão simples quanto brutal.

Na origem da criatividade está o sofrimento, o próprio e o alheio. A verdadeira dor é inefável, deixa-nos surdos e mudos, está para lá de qualquer descrição e qualquer consolo. A verdadeira dor é uma baleia demasiado grande para poder ser arpoada. E no entanto, apesar disso, os escritores empenham-se em pôr ‪#‎Palavras‬ no nada. Atiramos #Palavras como quem atira pedrinhas a um poço radioactivo até o entulharmos.

Quem poderia deitar palavras destas cá para fora sem as ter sentido no seu âmago? A ridícula ideia de não voltar a ver-te é uma viagem para os corações fortes, sendo inevitável a rendição crescente ao lado mais frágil do ser humano. Se ao longo de cada cenário nos vamos confrontando com a dura realidade de Marie Curie, as últimas páginas, que incluem o derradeiro testemunho pessoal e que contém os registos do diário da cientista, aperta-nos o peito ainda mais, sendo provável que as lágrimas cheguem mesmo aos olhos daqueles que se julgam mais insensíveis. 

A vida da mulher que descobriu o rádio tem tanto de fascínio como de horror. A perspectiva que vamos tendo pelos olhos de Rosa Montero mostra-nos a dura realidade do que foi, e às vezes ainda é, ser mulher num mundo de homens, como o universo da ciência, ainda para mais sendo mais bem sucedida do que a grande maioria dos seus colegas. Os sacrifícios feitos, as batalhas esgotantes e uma situação familiar que também a levava a desvalorizar-se a si mesma, tornaram todo o seu caminho doloroso por vezes insuportável. Valia-lhe o seu Pierre, o seu tão amado Pierre, até ao dia em que após uma pequena discussão ele sai de casa para o laboratório e ela não mais o volta a ver. 

Este é um livro imenso, onde a antítese e a catarse convivem para darem origem a uma obra ímpar, reflectindo-se numa leitura intensa, apaixonada, factual, mas que ao mesmo tempo dá espaço à imaginação do leitor para as suas próprias divagações. Posso dizer, sem vergonhas e com toda a certeza, que foi a leitura que mais me arrebatou desde Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, de Afonso Cruz, uma das minhas obras preferidas de todos os tempos. É como ter diamantes nas mãos.

«A criatividade é justamente isso: uma tentativa alquímica de transmutar o sofrimento em beleza. A arte, em geral, e a literatura em particular, são armas poderosas contra o Mal e a Dor. (…) a literatura torna-nos parte do todo e, no todo, a dor individual parece que dói um pouco menos. Mas o sortilégio também funciona porque, quando o sofrimento nos parte a espinha, a arte consegue transformar esse dano feio e sujo numa coisa bela. (…) Esmagamos carvões com as mãos nuas e às vezes conseguimos que pareçam diamantes.»

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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