Recensão: Deuses Americanos – Sombras, Neil Gaiman – Scott Hampton – Rick Parker

Deuses Americanos – Sombras

História e Diálogos: Neil Gaiman (tradução de Renato Carreira)

Guião e Esboços: P. Craig Russell

Arte: Scott Hampton

Letras: Rick Parker

Saída de Emergência

264 págs

18,80 euros

por João Morales

Deuses Americanos é mais uma confirmação daquilo que já percebemos há muito: Neil Gaiman é um extraordinário inventor de histórias. Neste seu trabalho passado a BD (com a sua contribuição, essencialmente realizado por P. Craig Russell e Scott Hampton, mas que conta com diversas participações, em diferentes partes do livro) descobrimos uma reflexão sobre o antigo, o muito antigo, e a sua permanência na Humanidade. A América que surge logo no título não nasceu com Colombo, nem sequer com os índios que o receberam. Os ecos que esta fábula intemporal para adultos fazem soar reproduzem um som ancestral, gutural, uma respiração mantida em vida latente com a cumplicidade de uma amnésia mais ou menos consciente cultivada através de várias épocas: “estes são deuses apagados da memória. Até os seus nomes foram esquecidos. Os deuses morrem, e quando morrem, ninguém os chora ou recorda. As ideias são mais difíceis de matar do que as pessoas, mas podem ser mortas.”

Shadow está preso, em vésperas de ser libertado. Vive o dia-a-dia com calma e bonomia, na certeza da mulher que vai reencontrar, do emprego que o espera, da vida que planeou na sua cabeça e tenciona habitar. Um colega de cárcere avisa-o que vem uma grande tempestade a caminho e, à laia de coro grego, vamos encontrando esse estribilho ao longo da história. Talvez a tempestade seja tão antiga que ninguém recorde o seu início, mesmo os que antecipam o seu regresso. 

Claro que os planos saem furados. Shadow sonha e pergunta-se onde está. “Na terra e debaixo da terra. Estás onde aguardam os esquecidos. Para sobreviveres tens de acreditar”, responde-lhe uma criatura com quem contracena nesse momento onírico.

Wednesday, é esse o nome do futuro patrão de Shadow, surge-lhe na vida, encabeça o seu novo destino, e acentua rapidamente o ritmo de “road book”, ao definir os caminhos, apresentar as figuras que vão entrando em cena, evocando confrontos antigos que poderão voltar ser necessários na reafirmação de poder e de uma hierarquia que envolve diferentes tipologias.

Gradualmente, vamos integrando a noção de que nos movemos numa trama com séculos de construção, vão surgindo histórias dentro da história principal (uma espécie de Contos de Canterbury com elementos de Fantástico), e somos confrontados com a necessidade de entender o continente americano com um olhar mais amplo, resultado de muitas migrações, contingências mais ou menos pessoais, repositório de renegados e aventureiros – humanos ou divinos, pouco parece importar a destrinça. “Na verdade, as colónias americanas eram tanto uma lixeira como uma fuga. Nos dias em alguém poderia ser enforcado em Londres por roubar doze pence, as Américas tornaram-se um símbolo de clemência, de uma segunda oportunidade. Chamam-lhe degredo”, lemos numa das incursões históricas, situada em 1721, a fazer fé no diário do Sr. Ibis, um estranho agente funerário que cruza os tempos, na companhia do sócio, Jacquel: “mas nem sempre fomos agentes funerários. Éramos cangalheiros e, antes disso, simples coveiros”.

A passagem pelo Maior Carrossel do Mundo é inesquecível, com algo de Felliniano em todo o glamour que envolve. E a sua importância é intuída pelo próprio personagem, conforme o escritor partilha com os leitores: “Shadow sentiu-se intrigado por perceber que o preocupava mais violar as regras subindo ao Carrossel, do que quando foi cúmplice no assalto”.

O confronto de períodos históricos, mitologias, crenças, é também uma ardilosa e metafórica forma que Neil Gaiman encontrou para criticar alguns aspectos da nossa sociedade actual, que passam pelo vazio na era dita da Comunicação e numa selva de relacionamentos que faria corar de vergonha a mais malévola das figuras criadas em qualquer iconografia mística. Veja-se a brutalidade do episódio do táxi, antes de regressarmos ao combate que serve de eixo central a este caleidoscópio, uma história de disputa entre “deuses velhos nesta terra nova e sem deuses”. 

A diversidade de colaborações, nas páginas de abertura de capítulos, uma espécie de capa individual (ou cortina) para cada um, ou em alguns fragmentos que se integram na narrativa central, está perfeitamente consolidada, inclusive numa gama de cores coerente que, mesmo nas mudanças de ambiente, consegue manter a dimensão psicológica. Cada passo, cada pista, acaba por se encaixar, pelo menos na nossa interpretação, já que há coisas que permitem essa polissemia saudável e dinamizadora. E regressamos sempre a Shadow, o escolhido. Porquê ele? “A maçã não cai longe da árvore”.

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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