Jazz em Agosto 2019: Mary Halvorson Code Girl – A canção do futuro

© Jazz em Agosto / Petra Cvelbar    

Para encerrar o Jazz em Agosto deste ano, Mary Halvorson regressou com um novo formato, onde a contemporaneidade e a improvisação servem de pretexto para operar sobre o formato de canção. O resultado é excelente.

Por João Morales

Já nos visitou por diversas vezes, mas continua a ter o dom de brindar o auditório com propostas inovadoras, dando a conhecer de uma forma cada vez mais ampla o universo de possibilidades que tem arriscado explorar. Mary Halvorson não é só uma interessante e criativa guitarrista e compositora, é também responsável pela concepção e coordenação de diferentes formações, explorando e forçando com inteligência os limites do Jazz contemporâneo.

Code Girl é a designação do sexteto que nos trouxe para encerrar o Jazz em Agosto 2019. A primeira vez que nos visitou integrava um colectivo liderado pelo gigante Anthony Braxton e as coisas acabam por fazer sentido em consonância, uma vez que, lemos na folha de sala deste espectáculo (tal como as restantes da autoria de Rui Eduardo Paes) «o termo “code girl” foi usado por Braxton para aludir à forma como, nas mãos desta nova-iorquina, a guitarra é uma máquina que serve para codificar e descodificar emoções».

Acompanhando os sucessivos aviões que há muito cruzam os céus do anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian (embora hoje sejam em maior número do que há dez, vinte, trinta anos) o ensemble liderado pela discreta Mary Halvorson foi criando uma densidade sonora segura e estável, sem recorrer a momentos de grande ruptura, passando por alguns elementos dignos de um pós-bop sem preconceitos, integrando algumas passagens mais devedoras da improvisação, a própria Halvorson tirando partido dos efeitos dos pedais, mas tudo em conformidade com uma pintura de grupo que não procurou momentos de espectacularidade, apesar de ela se ter imposto pela qualidade orgânica da proposta.

O grupo apresenta-se com duas vozes. Uma, Maria Grand, que além do saxofone tenor acompanhou em diversas passagens a voz principal. Mas foi Amirtha Kidambi, cantora que já trabalhou com nomes como Matana Roberts, Ingrid Laubrock, Trevor Dunn ou William Parker a captar as maiores atenções. De ascendência indiana, integra a modernidade com enorme naturalidade no seu trabalho (já executou peças de Muhal Richard Abrams ou Robert Ashley), demonstrando ao mesmo tempo uma pureza de timbre que faz parecer clássicos os mais inventivos movimentos.

A sua abordagem, inicialmente bastante tradicional (em algumas passagens a fazer lembrar até Joni Mitchel), resulta de uma exposição a várias formas de composição e execução, como sejam a Clássica, a Contemporânea, a tradição indiana e a improvisação – transversal a várias delas. Há indícios do trabalho icónico e incontornável de Maggie Nicols ou Julie Tippett, passando depois a integrar no seu discurso sonoro uma paleta de sons onde cabem onomatopeias, ascensões de timbre e prolongamento de sílabas em diversas palavras, o que provoca um efeito orquestral sub-reptício, mas muito eficaz. Vale a pena descobrir um outro projecto em que está fortemente envolvida, Elder Ones.

Logo no início do concerto esta voz ondulante, serpenteante, surpreende, bem como o swing imediatamente evidente, a capacidade de criar ondas de ritmo e um apelo quase físico demonstrado por um excelente baterista, Tomas Fujiwara, um jovem nascido em 1977 que já tocou com gente como Anthony Braxton ou John Zorn. Ao longo de toda a noite, Fujiwara foi um dos pilares deste agrupamento, sempre na linha da frente, sempre com um ritmo alucinante, sempre a acompanhar cada um dos elementos quando era necessário ir mais adiante. Um outro músico a reter no radar. Aliás, esta é também uma das mais-valias de um festival com a grandiosidade e variedade do Jazz em Agosto; ao trazer grupos que estão no activo há pouco tempo, estamos a assistir em tempo real ao crescimento criativo de alguns dos nomes que serão, certamente, ícones das gerações seguintes.

Dois sopros marcam presença nesta aventura, a já referida Maria Grand no saxofone tenor e o trompetista Adam O’Farrill, que também teve direito a alguns solos, momentos em que pôde demonstrar as suas capacidades. No baixo, Michael Formanek, um veterano. Se, nos anos 70, ainda adolescente, acompanhou o baterista Tony Williams ou o saxofonista Joe Henderson, e na década seguinte juntou ao palmarés dos palcos heróis como Stan Getz, Gerry Mulligan ou Freddie Hubbard, o trabalho consolidado com Dave Burrell, Tim Berne ou Marty Ehrlich sagrou o seu nome. Formanek, cuja segurança foi notória na forma como se articulou ao longo de toda a noite, mantendo quase sempre uma preponderância nas diferentes combinações que surgiam em diferentes passagens, utilizando a sapiência da experiência para mascarar a inventividade com a naturalidade de quem domina as suas diferentes facetas.

Na génese de tudo isto, Mary Halvorson, a personagem mais discreta em palco, uma mulher de pequena estatura que, não obstante os elogios que tem recebido da crítica e dos seus pares, com a consequente oportunidade de arriscar formatos e encontros que não estão ao alcance de todos (Marc Ribot, Peter Evans, Elliott Sharp) se manteve discreta ao longo da noite. As composições são suas (e, ao contrário do que se possa pensar, esta faceta da música que escutamos não será displicente, bastava atentar na quantidade de pautas que todos os músicos tinham – baterista incluído – e na preocupação que um roubo pelo vento causava a cada momento). Apenas no último tema, ainda antes do encore, Halvorson se liberta um pouco, expressando-se através de riffs mais aguerridos, escapando à quase clandestinidade a que se remeteu duramente grande parte do concerto. Regressados para o dito encore, vozes e sopros definem um campo, o trio guitarra-baixo-bateria avança por outro, convergindo os seis músicos para uma caminhada final em comum, símbolo da harmonia que se fez escutar ao longo da noite. Depois dos aplausos finais, Mary coloca a sua bolsa a tiracolo e retiram-se todos. Relembro as piadas que existem sobre a bolsa da Rainha de Inglaterra e não posso deixar de sorrir.

© Jazz em Agosto / Petra Cvelbar    
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