Bran Morrighan https://branmorrighan.com Literatura, Leitura, Música e Quotidiano Sat, 06 Apr 2024 12:36:42 +0000 pt-PT hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.2 https://branmorrighan.com/wp-content/uploads/2020/12/cropped-Preto-32x32.png Bran Morrighan https://branmorrighan.com 32 32 [Opinião] Nocturnes, Kazuo Ishiguro https://branmorrighan.com/2024/04/opiniao-nocturnes-kazuo-ishiguro.html https://branmorrighan.com/2024/04/opiniao-nocturnes-kazuo-ishiguro.html#respond Sat, 06 Apr 2024 12:36:39 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25518

Nocturnes
Kazuo Ishiguro

Editora: Faber & Faber

Nocturnes foi a minha estreia a ler o prémio nobel Kazuo Ishiguro. Um risco em duas vertentes: já não lia um livro de contos há bastante tempo (anos) e não sei se um livro de contos é a melhor entrada para conhecer o universo de um Prémio Nobel, mais conhecido pelo seu romance The Remains of the Day. Este foi também o seu primeiro livro de contos, após seis romances publicados. No entanto, numa das minhas viagem no início deste ano, enquanto esperava pelo meu vôo no aeroporto, vi o Nocturnes em destaque e quando reparei que eram contos envolvendo música, Itália e Inglaterra, pensei — “Porque não?”.

Estes cinco contos são caracterizados por apresentarem histórias atípicas, personagens que vivem num tumulto interior, enredos insólitos e uma aura a roçar um pouco o lunático. Talvez devido a essa combinação de elementos tão atípicos, mas ao mesmo tempo tão humanos, embora tenha achado alguns dos contos algo inesperados na sua loucura, também fiquei curiosa sobre que fim é que estes pequenos contos teriam. E se existe um tema comum a todos eles, é uma espécie de desencantamento profundo pela vida e pelo amor, aos mesmo tempo que os personagens tentam resgatar esse encantamento através de atitudes e decisões a roçar o absurdo.

Apesar de cada conto quase merecer ser um romance por si só, a verdade é que este registo breve, onde muito fica no ar, onde tanto é deixado à imaginação do leitor, reflecte na perfeição os encontros casuais que temos nas nossas vidas, as informações parciais e como lidamos com elas, as expectativas que nunca saberemos se se irão concretizar ou não. Temos desde actos de amor desesperado a uma resignação profunda de que as nossas emoções são tão transitórias como uma estadia num hotel ou uma viagem às montanhas.

A música, nas suas mais variadas formas — de serenatas, concertos em piazzas, a vinis em pano de fundo ou apenas um sonho pelo qual se está disposto a desfigurar-se a si mesmo (!!!!) — liga os pontos que ficam no ar. Uma espécie de homenagem a uma arte que tem tanto o poder de nos resgatar quanto de nos enfeitiçar com esperanças e sonhos.

Fica a curiosidade de agora ler um romance do autor. Se recomendo Nocturnes? Diria que acho necessário ter uma ligação com a música para além do ouvinte ocasional e estar aberto a uma viagem que nem sempre fará o maior dos sentidos e que beneficiará da nossa compreensão e quase perdão nos momentos mais absurdos. Ainda assim, uma leitura que desfrutei.

]]>
https://branmorrighan.com/2024/04/opiniao-nocturnes-kazuo-ishiguro.html/feed 0
[Reportagem MDX] A Estreia Catártica de The Pineapple Thief em Portugal e a Magia Progressiva de um Concerto Memorável https://branmorrighan.com/2024/03/reportagem-mdx-a-estreia-catartica-de-the-pineapple-thief-em-portugal-e-a-magia-progressiva-de-um-concerto-memoravel.html https://branmorrighan.com/2024/03/reportagem-mdx-a-estreia-catartica-de-the-pineapple-thief-em-portugal-e-a-magia-progressiva-de-um-concerto-memoravel.html#respond Sat, 16 Mar 2024 14:33:12 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25513

Reportagem original: https://www.musicaemdx.pt/2024/03/05/a-estreia-catartica-de-the-pineapple-thief-em-portugal-e-a-magia-progressiva-de-um-concerto-memoravel/

Faz já quase duas semanas que me desloquei ao Lisboa ao Vivo para ver The Pineapple Thief, banda que conheci há já 16 anos atrás e que nunca tinha oportunidade de ver. Confesso que fiquei espantada com a sala completamente cheia e com fãs tão entusiastas quando na verdade não conheço quase ninguém que também seja fã da banda. Mas a espera valeu completamente a pena e foi um dos melhores concertos a que fui nos últimos tempos! Deixo-vos com o texto que escrevi para a família no Música em DX e com a playlist do concerto! As duas fotografias são do meu telemóvel.

Noite de domingo, noite de clássico no futebol, mas nada disso intimidou quem se deslocou ao Lisboa ao Vivo com casa cheia para homenagear os vencedores da noite – The Pineapple Thief! O espetáculo, com início marcado para as 20h30 e abertura de Randy McStine, prometia uma noite memorável. Às 20h15, ainda se via uma fila extensa à porta, enquanto no interior a sala já fervilhava de entusiasmo, marcando a estreia da banda britânica em solo português. A espera, embora longa, revelou-se insignificante perante a experiência única que se desenrolou, alimentando a esperança de um rápido regresso.

Com a pontualidade britânica, Randy McStine subiu ao palco munido da sua guitarra e loop station, entrelaçando as suas canções e colaborações com mestria, aquecendo a audiência com uma voz potente e vibrante. O seu último disco, Unintentional, foi lançado em Dezembro de 2023 e o artista americano conta já com 12 lançamentos na plataforma bandcamp. A sua simpatia e a sua disponibilidade para interagir com o público e vender o seu próprio merchandising deixou-nos cativados. Terminada a sua bela actuação, era palpável a expectativa crescente para os The Pineapple Thief.

Bruce Soord, vocalista e guitarrista, iniciou o projecto há já 25 anos atrás, tornando a banda numa das referências de rock progressivo internacionais. Acompanhado por Jon Skyes há mais de duas décadas no baixo, a formação actual conta também como membros fixos Steve Kitch nos teclados e Gavin Harrison na bateria, este último reconhecido também pelos Porcupine Tree (banda que tive o prazer de ver no Incrível Almadense em 2008!). Ao vivo, a banda tem-se feito acompanhar de Beren Matthews na guitarra e voz, tendo também contribuído com as mesmas em algumas partes nas gravações do último It Leads to This.

O quinteto sobe ao palco perante um público já efusivo, demonstrando já a sua expectativa.. Mesmo com expectativas elevadas, bastou o primeiro tema, “The Frost”, para rapidamente superá-las. A magia dos discos transformou-se em energia visceral ao vivo. A sinergia entre os músicos criou uma atmosfera libertadora, projetando ao mesmo tempo uma ligação crescente com a plateia que não hesitou em expressar o seu fervor.

O alinhamento da noite levou-nos por uma viagem de emoções fortes. Em canções como “Our Mire”, “Version of the Truth”, ou “Rubicon”, mas também como tema geral do concerto, testemunhámos o talento conquistador da banda, com uma bateria comandante, teclado envolvente, baixo dançante e pulsante, guitarras cavalgantes e a voz liderante de Bruce Soord irrepreensível. A performance da banda, a dança entre os elementos, os momentos mais calmos alternados com momentos explosivos, os solos mais vibrantes de Beren Matthews a complementarem a personalidade da banda, tornou toda a experiência catártica. 

Para além de temas do último disco e de Version of Truth, a banda tocou ainda dois temas de Give it Back (uma colecção de temas anteriores agora regravados também com as contribuições poderosas de Gavin Harrison) e “The Final Thing on My Mind”, do disco The Wilderness, que encerrou o set principal. Este último tema é um dos meus preferidos da banda e foi um privilégio vê-los a construir a narrativa com momentos sublimes e arrebatadores, e com uma carga emocional muito própria. Acredito que por esta altura a banda também já estava completamente rendida ao público português, o que tornou o momento muito genuíno. 

Felizmente a espera para o encore foi curtinha, e a banda voltou com “In Exile” e “Alone at Sea”. Confesso que soube a pouco, mas apenas porque foi uma noite tão bonita. Para quem tem acompanhado a banda, penso que fica a curiosidade dos primeiros tempos ao vivo e a vontade de não ficar muitos mais anos sem os ver novamente. Guardo um respeito e admiração enormes por este projecto, pela sua evolução sonora e lírica, que também reflectem as várias fases de vida e de intimidade, o que permite a quem ouve poder libertar alguns dos seus próprios “Demons”. Resumindo, queremos mais.

Mais novidades: https://branmorrighan.com/categoria/musica

]]>
https://branmorrighan.com/2024/03/reportagem-mdx-a-estreia-catartica-de-the-pineapple-thief-em-portugal-e-a-magia-progressiva-de-um-concerto-memoravel.html/feed 0
[Queres é (a) Letra!] Hipoteca, Homem em Catarse https://branmorrighan.com/2024/03/queres-e-a-letra-hipoteca-homem-em-catarse.html https://branmorrighan.com/2024/03/queres-e-a-letra-hipoteca-homem-em-catarse.html#respond Sun, 03 Mar 2024 17:49:53 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25505
Hipoteca

Já faz algum tempo que não volto a algumas das rubricas do blogue, mas esta semana que passou soube do novo single do artista português Homem em Catarse, e um Queres é (a) Letra! tornou-se imperativo. Hipoteca é a nova canção de Afonso, que nas suas palavras nos explica “50 anos depois do 25 Abril, ainda temos de dizer que um direito não é favor…. a Hipoteca é também um manifesto que dá voz à inquietude que atinge transversalmente o nosso país! Há que dar consciência à nossa voz e é através da música e das canções que o posso fazer.

E a verdade é que para quem é de Lisboa, vive em Lisboa, ou até apenas vai a Lisboa de vez em quando, esta canção vai soar tão verdadeira que dói. Já não é apenas no centro de Lisboa, é também nos subúrbios e até para além dos mesmos. A verdade é que Lisboa tem-se descaracterizado e tornado insustentável para a grande maioria dos portugueses. Em complemento à temática, como sempre, Homem em Catarse traz-nos mais uma canção cujo ritmo e melodia também nos incita a uma espécie de rebeldia e de bater com o pé no chão.

Deixo-vos com o videoclip e no final deste post podem encontrar link para as diversas plataformas onde poderão ouvir e partilhar Hipoteca, assim como as próximas datas ao vivo do artista português.

Venham todos, venham todos…
venham todos turistar!
não interessa gente sem casa,
o que interessa é faturar.

A economia é tudo
e assimetria é o que é
migalhas pró subúrbio
e hostéis juntos à sé.

Uma bolha a crescer,
mais um navio a chegar.
Não nos peçam um futuro
se o querem hipotecar.

Venham todos, venham todos venham todos turistar!
E a hipoteca por pagar.

Nem nas nossas casas
podemos viver
não cheira bem, não cheira a Lisboa
é o dinheiro a feder.

E uma criança…
lá no interior
Para ir prá a escola,
parece que é por favor.

Um direito não é um favor!

Venham todos, venham todos, venham todos turistar!
E a Hipoteca por pagar!
Nem nas nossas casas podemos viver.
E a Hipoteca por pagar!
Nem nas nossas casas
podemos viver.

Esta é a geração de jovens portugueses que, pela primeira vez, tem uma perspetiva de futuro mais sombria que a anterior. Esta é a geração de portugueses que anda uma vida inteira a pagar uma casa que nem chegará a ser sua. Esta é a geração do desequilíbrio, onde a qualidade de vida foge das grandes cidades amontoadas no tédio do excesso e da descaracterização. As senhoras à janela são expulsas da sua rua dando lugar aos nómadas sem rosto, como sem rosto fica a luz da cidade. Enquanto hipotecamos o nosso futuro e a descentralização é uma miragem, a hipoteca de todos nós continua a aumentar. E já começamos a pagar bem caro… a inflação dos nossos dias.

“Hipoteca” é o novo e interventivo single de Homem em Catarse, no qual explora novos caminhos mantendo a identidade da sua guitarra paisagista, inconfundível, aliada a novos ritmos e a uma mensagem muito pertinente e actual. “Hipoteca”, a par de “O tempo vem atrás de nós”, vai fazer parte do disco “Catarse Natural” que o músico edita no final do ano, mas, antes, vai ser possível constatar como soa ao vivo:

17 Abril | Cineteatro António Lamoso | Santa Maria da Feira
05 Maio | Fórum Municipal Luísa Todi “Guitarras ao Alto” | Setúbal

]]>
https://branmorrighan.com/2024/03/queres-e-a-letra-hipoteca-homem-em-catarse.html/feed 0
[Diário de Bordo] Escrevendo sobre o Tim Bernardes para o Música em DX https://branmorrighan.com/2024/02/diario-de-bordo-escrevendo-sobre-o-tim-bernardes-para-o-musica-em-dx.html https://branmorrighan.com/2024/02/diario-de-bordo-escrevendo-sobre-o-tim-bernardes-para-o-musica-em-dx.html#respond Wed, 28 Feb 2024 19:35:23 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25502 Meus queridos leitores,

Como estão? Tenho andado a ameaçar que volto e depois não acontece, ou acontece muito devagarinho, nos bastidores. No entanto, no início do mês aventurei-me a juntar-me aos nossos amigos no Música em DX para escrever, pela primeira vez em quase cinco anos!, sobre um concerto. Fui verificar e o último texto tinha sido do enorme Olafur Arnolds!

Volta e meia vou a outros concertos, mas não tenho escrito sobre os mesmos. Este ano, a disponibilidade permitindo, conto pelo menos tentar fazê-lo de vez em quando. A família MDX não se importa de me ter de volta e dá-me motivação extra! Afinal tenho estado fora do circuito há algum tempo, mas o gosto pela música, se possível, só cresceu.

Quando vi o anúncio do concerto do Tim Bernardes, ainda nem sequer tinha ouvido o seu último disco Mil Coisas Invisíveis. Na verdade, conheci o Tim já em 2017 com O Terno! Já na altura tinha ficado com aquela sensação de quentinho e de serem uma banda tão querida, que achei que esta era uma excelente oportunidade para ver o Tim novamente, agora a solo.

Enviei a minha disponibilidade ainda antes de ouvir o disco. Tive a sensação que seria uma aposta segura. Para os leitores mais antigos, vocês sabem que eu escolho a dedo sobre o que escrevo. O meu tipo de escrita não dá muita flexibilidade para escrever sobre coisas que não me dizem nada ao coração. Já aconteceu, e consigo escrever sobre a qualidade de algo, mas é tão mais belo quando levitamos não só durante o concerto como durante a escrita.

Escrever novamente para o Música em DX (obrigada mais uma vez, família!) foi como sair de mim mesma durante um par de horas para mergulhar numa dimensão que misturou a minha experiência durante o concerto, o quanto as canções de Tim na verdade me dizem, e o quanto foi catártico no final juntar as duas coisas e ter novamente um texto cá fora.

Quando criei o rascunho deste post, a minha intenção era só copiar aqui o texto da reportagem (como podem ver no final do post), mas entretanto já me estou a esticar! Ainda assim, não quero carregar Publicar sem mencionar que para além de vos agradecer lerem o meu texto, sugiro que ouçam o disco do Tim Bernardes. Eu não estava à espera que me tocasse tanto, que me identificasse tanto com tantas canções e a sua performance ao vivo — um pequeno gigante sozinho num palco que a certa altura parecia não ser suficiente para a sua alma — levou-me às lágrimas mais do que uma vez.

Deixo-vos com o link para o MDX, no final deste post está a playlist do concerto e, com sorte, falamos em breve? Obrigada pelos comentários recentes em posts anteriores. Fico-vos muito grata pelo vosso carinho! Até breve!

Reportagem original em: https://www.musicaemdx.pt/2024/02/03/o-carisma-e-a-humildade-de-tim-bernardes-no-coliseu-dos-recreios/

Estamos em 2017 e eu ouço falar nesta banda brasileira chamada O Terno que iria actuar brevemente no Musicbox. E lá estava eu, e talvez muitos de vós, a conhecer uma banda pela qual foi tão fácil ganhar carinho pela simplicidade, cumplicidade e boa energia. Ao mesmo tempo, Tim Bernardes, um dos membros da banda, lança o seu primeiro disco a solo “Recomeçar”. Avançamos para o presente, 1 de Fevereiro de 2024, e Tim Bernardes enche duas datas no Coliseu de Lisboa para nos brindar novamente com o seu último disco “Mil Coisas Invisíveis”, mas também com temas do disco anterior, algumas de O Terno, canções que escreveu para outros artistas e ainda uma cover de Bob Dylan. 

As luzes baixam, e com uma voz vibrante, com um laivo de timidez, mas ousada, Tim Bernardes abre a noite com o primeiro tema do seu mais recente álbum Nascer, Viver, Morrer. E logo aqui percebemos porque é que Tim Bernardes enche o coliseu de forma tão fácil – os seus discos são belos, mas o poder da sua voz, da sua presença, e do seu sorriso tão genuíno, conquista-nos facilmente. A partir daquele momento, as nossas emoções já não são bem nossas, mas antes um reflexo da narrativa que Tim Bernardes nos traz com as suas canções. 

Esta viagem – com referências a Fernando Pessoa, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, entre outros – torna-se muito pessoal à medida que vamos de canção em canção, ora ao som de uma das suas guitarras, ora ao som do piano. É impossível não sorrir, ou até não largar uma lágrima aqui e ali, quando Tim Bernardes projecta a sua voz em canções como Realmente Lindo ou Velha Amiga. Quando Tim Bernardes referiu a sua admiração pelo Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, referindo que ele próprio sentia que era ele que estava ali naquelas páginas, há um momento de compreensão silencioso sobre o processo criativo e de onde vem parte da alquimia da escrita das suas canções.

Chega a vez de Melhor do Que Parece, do reportório de O Terno, e a reação do público foi de reconhecimento e carinho pela banda do cantor. Não foi raro ao longo do concerto ouvir ecos e o público a cantar com Tim Bernardes, mas o que me admirou mais, porque obviamente era um público entusiasta e conhecedor, foi o respeito pelo silêncio e pela solenidade da maior parte das canções. A sequência das canções Última Vez e até Esse Ar (uma canção sobre a lua!) trouxe um momento mais solene, apropriado para potenciais corações partidos em recuperação. 

O que mais me fascina no Tim Bernardes, é que ele é muito mais do que um cantor de canções românticas – ele vai ao âmago dos caminhos intrincados do nosso crescimento num mundo em constante mudança, expondo uma vulnerabilidade que todos sentimos e poucos conseguimos expressar. A sua humildade e o seu sorriso radiante, dão esperança a quem tem o privilégio de se sentar e partilhar estes momentos íntimos que é expor os seus pensamentos numa das salas mais emblemáticas de Portugal. Em cada interação entre Tim e o público houve uma troca de carinho muito grande, com o músico brasileiro a expressar a sua gratidão por estar ali, após ter passado também pelo Porto. 

O fim do concerto aproxima-se com o início d’A Balada de Tim Bernardes, uma canção que nos lembra que mesmo no meio de desafios, porque não cantar? Termina com Recomeçar, do seu primeiro disco a solo, fechando uma viagem que foi uma espécie de psicoterapia musical, em que Tim deu voz e som a um espectro de emoções, equilibrando entre o humor e a genuinidade de quem se expõe. Foi uma noite muito bonita e não tenho dúvidas de que Tim Bernardes irá voltar a encher o Coliseu no futuro.

Playlist do concerto:

]]>
https://branmorrighan.com/2024/02/diario-de-bordo-escrevendo-sobre-o-tim-bernardes-para-o-musica-em-dx.html/feed 0
Estamos no Threads! https://branmorrighan.com/2023/12/estamos-no-threads.html https://branmorrighan.com/2023/12/estamos-no-threads.html#comments Tue, 19 Dec 2023 20:22:27 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25496 Por o blogue ter atravessado tantas fases diferentes da minha vida, acabei por fazer uma separação do que é a (Andreia) Sofia Teixeira a nível profissional e a Sofia Teixeira do BranMorrighan. A criação de páginas e perfis no Facebook, Twitter e Instagram, sempre me deixaram meia dividida sobre que rede social serviria que propósito para qual persona. Não sei se vai durar muito tempo, mas decidi dar uma oportunidade à app Threads onde vou tentar juntar as diversas facetas do meu dia-a-dia.

Por vezes os posts vão estar em Português, outras vezes em inglês. Umas vezes postarei coisas pessoais, outras profissionais, outras do blogue. Talvez seja uma péssima ideia, talvez venha a mostrar resultados interessantes. Vamos experimentar? Se tiverem conta no Threads, sigam-me em sofiateixeira_branmorrighan! Entretanto brevemente coloquei um post a sinalizar os 15 anos do BranMorrighan :)) Até já!

]]>
https://branmorrighan.com/2023/12/estamos-no-threads.html/feed 2
[Diário de Bordo] Redescobrindo o Fantástico https://branmorrighan.com/2023/12/diario-de-bordo-redescobrindo-o-fantastico.html https://branmorrighan.com/2023/12/diario-de-bordo-redescobrindo-o-fantastico.html#comments Sat, 02 Dec 2023 19:30:54 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25488

Deixem-me começar pelo óbvio — desde o COVID-19 que nunca mais nada foi exactamente o mesmo. E se por um lado para algumas pessoas as mudanças deveram-se precisamente à doença, no meu caso as coisas foram um pouco mais estranhas. Quando em 2022 estava tudo a voltar um pouco ao normal, voltei eu para casa em modo cyborg (não sabiam que sou um cyborg? pois leiam aqui) e desde então que isto tem sido uma montanha russa. O último ano também foi cheio de eventos inesperados. Alguns muito bons, outros muito maus, incluindo o falecimento da minha querida avó (post para outro dia) e um conjunto de factores/doenças dos quais ainda estou a recuperar.

Provavelmente vocês são mais inteligentes do que eu e não fazem o que eu faço — que é virar-me para não ficção e tentar compreender as entranhas do universo, os mecanismos dos elementos microscópicos, o entrelaçado entre corpo e mente ao ponto de não ver mais nada à frente… Enquanto que por curiosidade tudo isto é muito positivo, quando a coisa se torna uma pequena obsessão, nem tanto assim. Felizmente, tal como tenho vindo a dizer a mim mesma cada vez mais, tudo é passageiro. E sim, tudo, incluindo o bom e o mau, e por isso quando a maré está brava, tento lembrar-me que eventualmente acalmará.

Eu bem comprei um carrinho de livros, uma estante nova, etc. etc., mas enquanto os livros me passeavam pelas mãos, ainda assim não me estavam a tocar. Comprei alguns livros novos, uma série de e-books no Kindle, mas acabava sempre a cair na não-ficção. Mais uma vez, não sou contra quem só lê não-ficção, mas se vocês são leitores do blogue há algum tempo, sabem muito bem que por aqui se costumava ler de tudo, incluindo poesia e literatura meia esquisita, mas brilhante, como por exemplo I Love Dick ou Uma Rapariga é Uma Coisa Inacabada.

No entanto, se vocês são leitores há pelo menos uma década ou mais (e sei que alguns de vocês são — estou tão surpreendida pelas mais de 200 reacções no facebook ao último post!!) sabem muito bem que a minha paixão de adolescência e início da idade adulta foi sempre a literatura fantástica. Alguns também saberão que Juliet Marillier é uma das minhas autoras preferidas, cujo nome Bran deste blogue e do meu cão se deve a’O Filho das Sombras. Ainda tentei pegar num dos seus livros, mas a questão é que o meu coração não estava preparado para um romance e uma história que me comovesse demasiado. O luto é um bicho estranho.

No meio dos livros meios perdidos das mudanças para onde estou agora, encontrei o Lugar Nenhum do Neil Gaiman. Já li alguns livros do escritor, como Deuses Americanos ou O Oceano no Fim do Caminho, mas já fazia uns anos que não lia nada seu. E então pensei “porque não?”, provavelmente vai acontecer o mesmo que aconteceu com todos os últimos livros de ficção que tentei pegar até agora — leio uma ou duas páginas e pouso o livro sem voltar a pegar nele. Não sei se também passam por estas crises existenciais em que mesmo que os livros sejam os melhores, pura e simplesmente não pegam connosco. Acontece. A vida acontece.

O que também acontece é que como quem não quer as coisa, Richard e Door (dois dos personagens principais) lá se enfiaram na minha mente e já vou a mais de meio do livro. Eu que já tinha desistido de andar com livros atrás de mim, agora tenho o deja vú de há uns anos que é trazer o livro comigo mesmo que não tenha a certeza de haver oportunidade para o ler. E o que é que isto tem a ver com o redescobrir o fantástico? Tem tudo a ver. Porque na verdade, e não é a primeira vez, o fantástico tem o poder de nos tirar um pouco deste mundo e dar-nos espaço para respirarmos e processarmos as nossas próprias coisas.

Então mas Juliet Marillier não é fantástico? Claro que sim. Só que no meu caso eu precisava de algo mais “rijo”, mais “bruto”, mas ao mesmo tempo com um toque de sensibilidade e curiosidade que me prendesse na mesma, mas não me atirasse para lugares comuns do luto que tenho andado a processar nos últimos dois meses. O que — se já leram o livro — acaba por ser irónico dada a condição inicial de Door… E sim, por vezes ler coisas com situações semelhantes ajudam, mas eu já tenho os podcasts (ainda não vos falei do meu vício em podcasts, pois não?) e afins…

Não vou escrever nada em concreto sobre a leitura, porque vou guardar para quando publicar em específico sobre o mesmo, mas queria partilhar convosco, incluindo com aqueles que não lêem fantástico (e sim, tenho quem quase lhe dê um treco só de pensar em ler fantástico), que a fantasia também traz consigo um poder que às vezes o romance normal não consegue, por muito bom que seja. E o que mais me fascina é precisamente a capacidade de imaginação, de enredo intrincado, de personagens cheias de camadas e não lineares que nos deixam ali presos à espera do que vem a seguir.

E acabei a escrever bem bem mais do que aquilo que tinha planeado! Espero que tenham conseguido chegar ao fim! E se chegaram, não se esqueçam de subscrever a minha newsletter que vai voltar muito brevemente às vossas caixas de correio! Um abraço e deixem um comentário caso vos apeteça, caso concordem ou discordem de algo. Estou sempre curiosa com as vossas opiniões!

]]>
https://branmorrighan.com/2023/12/diario-de-bordo-redescobrindo-o-fantastico.html/feed 4
[Diário de Bordo] As voltas que a vida dá https://branmorrighan.com/2023/11/diario-de-bordo-as-voltas-que-a-vida-da.html https://branmorrighan.com/2023/11/diario-de-bordo-as-voltas-que-a-vida-da.html#respond Sat, 18 Nov 2023 17:44:03 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25476

Queridos leitores,

Bem sei que o tempo está cinzento lá fora (pelo menos aqui no distrito de Lisboa), mas decidi ilustrar este post com uma fotografia de um dos últimos dias de Agosto que me deu muito em que pensar. A verdade é que desde então a vida já me trocou as voltas umas quantas vezes. Tive momentos de muita felicidade e momentos de muita dor e luto. Ainda assim, lembro-me que quando tirei esta selfie numa das minhas viagens sentia esperança. Apesar de tudo o que aconteceu desde então, finalmente alguma luz e esperança voltam a habitar deste lado e por isso cá estou eu a tentar partilhá-las um pouco convosco.

Há muito tempo que queria voltar ao blogue, mas confesso que tenho tido uma relação meia complicada com os computadores. Como a maioria de vocês sabe, sou engenheira informática, investigadora em ciência das redes e sistemas complexos, professora do departamento de informática da FCUL e, como devem imaginar, o tempo que passo ao computador é mais do que aquele que por vezes desejaria. Devido a algumas questões de saúde e ao excesso de trabalho, acabo por só conseguir estar ao computador para trabalhar e depois o que quero é desligar… Tem sido um exercício arranjar um novo balanço para aqui voltar.

E, por agora, vou tentar! Dei-me conta esta semana que o blogue BranMorrighan vai completar 15 anos em Dezembro. 15 anos!! Lembro-me de quando se tornou adolescente e agora começa a contagem decrescente para se tornar um blogue “adulto”. Mas é curioso que a facilidade com que eu partilhava posts há 10 e 15 anos atrás, está longe de ser a facilidade que sinto agora. Há quem possa dizer — é normal, cresceste, és adulta, a tua vida é outra, etc. etc. etc. E em parte é verdade, mas outra parte está relacionada com a responsabilidade que sinto agora em todos os cargos profissionais que ocupo.

Dito isto, não garantindo o regresso como antigamente, quero dizer-vos que como parte deste caminho em tentar arranjar um maior equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal irei tentar voltar a partilhar convosco mais sobre as minhas leituras e também escrever sobre concertos e novos projectos musicais que tenho ouvido. Esta semana saí da toca para ir ver o André Henriques e foi tão bonito que sou capaz de vir a escrever sobre o mesmo. No outro dia, por mero acaso, também me cruzei com o projecto Ela Jaguar e foi uma delícia de ver e ouvir.

Se estão curiosos com o que ando a ler, posso adiantar que estou com estes dois livros em mãos: The Way Things Are Kindle Edition (Lama Ole Nydahl) e Neverwhere (Neil Gaiman). Sempre tive bastante curiosidade sobre o budismo (já li o livro Why Buddhism is True e achei muito interessante) e confesso que já tinha saudades de ler fantástico, portanto optei pela versão revista de Neverwhere que foi publicada pelas Edições Saída de Emergência há um par de anos, se não estou engana.

O post já vai longo, mas deixo-vos um raiozinho de sol de esperança. Agarrem-se às coisas boas. Se sofrem de ansiedade, burnout, depressão ou desordens/doenças associadas, não estão sozinhos. E refiro isto porque nunca antes vi uma prevalência tão grande destas condições e é verdade que a próxima pandemia já cá está e é uma pandemia de saúde mental. Cá estarei para tentar também trazer alguma luz a estes assuntos, quando possível. Abraço grande e tenham um bom fim-de-semana!

]]>
https://branmorrighan.com/2023/11/diario-de-bordo-as-voltas-que-a-vida-da.html/feed 0
Jazz em Agosto 2023: Uma calma apenas aparente [Mary Halvorson’s Amaryllis] https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-uma-calma-apenas-aparente-mary-halvorsons-amaryllis.html https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-uma-calma-apenas-aparente-mary-halvorsons-amaryllis.html#respond Mon, 07 Aug 2023 20:36:47 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25467

Jazz em Agosto 2023: Uma calma apenas aparente [ Mary Halvorson’s Amaryllis ]

Um sexteto dedicado a receber-nos com bonomia. Todavia, a aparente facilidade que serve de primeira impressão, acaba por deixar à vista (e ao ouvido, principalmente) uma construção inteligente e bem estruturada. Com um pé na composição, outro na voz de cada músico.

Texto: João Morales

Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo

A música produzida pelo Mary Halvorson’ Amaryllis assenta numa leveza e numa capacidade de empatia, que não deve afastar o seu entendimento acerca da complexidade que envolve. Logo no arranque do concerto, um primeiro tema transmite um ambiente sonoro calmo, pastoril, acentuando uma dimensão cinematográfica que acompanha as opções do sexteto.

O anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian estava à cunha, para escutar a banda sonora ideal para uma noite de Verão assumido. Mary Halvorson chegou aos palcos portugueses em 2013, pela mão de Anthony Braxton (neste mesmo festival) e é hoje uma das mais populares propostas do jazz contemporâneo, com um leque de colaborações que engloba nomes como Ches Smith, Jessica Pavone, Peter Evans, MIchael Formaneck ou Ingrid Laubrock. O álbum que deu nome a este sexteto (e do qual a banda tocou apenas um tema, oferecendo-nos imenso novo material, como a compositora explicou quando se dirigiu à audiência) foi lançado em 2022 e unanimemente considerado como um dos discos mais importantes do ano.

A articulação entre os seis elementos do sexteto acentua a orquestração, uma textura elaborada mas de fácil adesão, que cobre uma sonoridade de um certo jazz de câmara, com as conexões entre cada elemento afinadas e precisas, expondo um caminho que faz cruzar composição e improvisação, trilhado sem esforço aparente e com subtil mestria de todos.

Os temas foram sucedendo, oito mais um curto encore. O segundo começa com o vibrafone de Patricia Brennan (com um percurso musical entre a improvisação e Música Clássica) e o trompete de Adam O’Farrill (filho e neto de músicos), partilhando uma sedução onírica, Mary discorre sobre o tema, o conjunto toma forma, a precisão das passagens é uma constante.

Já no início do tema seguinte, a guitarra de Halvorson tira partido de um pedal de delay, sublinhado aquilo a sua intenção já antiga de não ficar presa a um género musical, antes integrando nas suas composições elementos que nos trazem diferentes cambiantes, sem que em compartimentos específicos s e esgotem. Na sua mão, os movimentos repetitivos acentuam a novidade enclausurada. Há, na música produzida por este sexteto, um rejuvenescimento do easy listening, um sentimento já depurado que nos chega da década de 50 do séc XX ou uma longínqua nostalgia de algumas orquestras de salão, tudo destilado num caudal de modernidade e contemporaneidade que fica bem expresso na forma como as bases rítmicas sustentam os solos ou na recusa de qualquer evidência mais histriónica. Contudo, não se confunda a adesão melódica que a música pede com qualquer simplicidade ou cedência – tudo é filtrado e preenchido, com rigor e pormenor.

Apesar da coerência entre todos, será justo destacar o solo efectuado pelo já referido O’Farrill ou a constante vivacidade do contrabaixista Nick Dunston (músico que já tocou com Marc Ribot, Ches Smith, Craig Taborn ou Vijay Iyer), incluindo alguns momentos em que demonstrou uma sábia manipulação do arco. O agrupamento é completado com o trombone de Jacob Garchik (homem que tem no seu currículo sumidades como Lee Konitz, Henry Threadgill ou o fabuloso Kronos Quartet e, em 2022 publicou o magnífico álbum Assembly, pela Yestereve Records) e a bateria de Tomas Fujiwara (que integra um outro colectivo com Mary Halvorson, Triple Double), responsável igualmente por uma prestação assinalável.

Em suma uma noite de música extremamente agradável, sem momentos de mestria individual à cabeça, antes privilegiando um ambiente conjunto, um avanço em bloco ao longo da noite, que permitiu aos músicos irem abandonando alguma contenção para, gradualmente, exporem um pouco mais a sua faceta de improvisadores.

]]>
https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-uma-calma-apenas-aparente-mary-halvorsons-amaryllis.html/feed 0
Jazz em Agosto 2023: De corpo e alma [Zoh Amba Trio] https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-de-corpo-e-alma-zoh-amba-trio.html https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-de-corpo-e-alma-zoh-amba-trio.html#respond Fri, 04 Aug 2023 18:00:03 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25456

Jazz em Agosto 2023: De corpo e alma [Zoh Amba Trio]

Seguindo a linha claramente traçada para este ano, o trio que actuou na noite de dia 2 de Agosto foi militantemente dirigido por uma mulher, a jovem Zoh Amba, que nos deixou sem respiração, sem nunca perder o fôlego.

Texto: João Morales

Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo

Não há qualquer período para prólogo ou introdução. Assim que os três músicos começam a sua função, o ritmo dominante está estabelecido e o clima sonoro em que estamos mergulhados não deixa grande margem para dúvidas: vai ser uma noite de Free jazz, o que Zoh Amba Trio propõe no anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian. E cumprirá.

Há na música de Zoh uma urgência e uma entrega que são características de toda uma herança sonora citada e revisitada amiúde ao longo das suas intervenções, uma genealogia que passa por nomes como Albert Ayler, Frank Wright, Frank Lowe ou David S. Ware – como bastas vezes tem sido referido, denunciando logo uma corrente de saxofonistas onde a espiritualidade tem um papel fulcral na criação e entendimento do que é a música – mas que não se esgota nestes mestres. Ao longo de uma hora de concerto (talvez um pouco menos, diga-se em abono da verdade), passagens existiram que podiam perfeitamente prestar homenagem ao recentemente desaparecido Peter Brotzmann, mas em outros momentos a sonoridade poderia remeter para um outro nome maior do jazz mais liberto da década de 60, hoje algo esquecido, o grande Arthur Jones (que, radicado em França, assinou uma das obras-primas do jazz, o disco Scorpio, gravado em 1969 e publicado dois anos depois).

«Aos 23 anos, a saxofonista tenor Zoh Amba é nada menos que um fenómeno. Deixando o seu Tennessee natal para se estabelecer em Nova Iorque e movida por uma energia extraordinária, ela faz virar muitas cabeças, começando por improvisadores que têm duas, três ou até quatro vezes a sua idade», lia-se nas notas de apresentação do icónico Festival International de Musique Actuelle de Victoriaville, em Maio deste ano. Amba conta até agora com dois discos publicados, ambos em 2022, O, Sun e Bhakti, (o primeiro, com a produção de John Zorn, publicado na sua editora, Tzadik, e contando na bateria com Joey Baron, elemento central do “Dowton New York” e do ciclo de Zorn). Impossível que não fosse uma das grandes expectativas na edição do Jazz em Agosto 2023. Contudo, o anfiteatro não estava a abarrotar, embora composto…

O portento que nos visitou foi servido em formato de trio, ligação propícia para que cada um dos elementos pudesse ser devidamente apreciado. Atenção, não estamos a falar de longos solos individuais, mas de um ritmo trepidante – na maioria do tempo – que exigia a um o controlo mais que razoável da evolução da realidade e uma sensibilidade apurada para o que ia surgindo em palco, em grande medida impulsionado pela intervenção visceral que a pequena saxofonista, ao centro, vociferava em plena dedicação. A improvisação perfilhada que escutámos deve mais a um entendimento intuitivo e sensorial do que tocar e de como fazê-lo, do que a uma concepção cerebral e teórica.; estamos perante uma improvisação extremamente “física”.

A ligação entre os três músicos foi excelente. Luke Stewart, homem que tem no seu currículo nomes como Archie Shepp, Ken Vandermark, Daniel Carter, Hamiet Bluiett ou Wadada Leo Smith – e que ainda em 2022 nos visitou, então integrado nos Irreversible Entanglements – teve desta vez todo o espaço por onde demonstrar a sua virtualidade, correndo o braço do contrabaixo, fixando dinâmicas, assegurando contraponto aos seus dois pares, raramente abrandando o ritmo, ao sabor da ofensiva que pouca trégua permitia. Algumas vezes, quando a utilização do arco pretendia suavizar o colectivo, foi acompanhado por uma das contingências obrigatórias destas noites do Jazz em Agosto: adivinharam, os aviões.

A outra metade da secção rítmica foi assegurada por Chris Corsano, artista bem conhecido do público português (até pelo seu trabalho regular com Rodrigo Amado), com mais de uma centena de discos gravados, envolvendo Evan Parker, John Edwards ou Paul Flaherty, mas também os Six Organs of Admittance (nomes seminais da corrente New Weird America), o ecléctico Jim O’Rourke ou Thurston Moore (o guitarrista dos Sonic Youth).

Corsano esteve imparável, num constante cruzamento de ritmos, uma utilização sagaz dos pratos e uma perecpção rítmica assaz responsável, consolidando o edifício sonoro que se foi erguendo perante uma plateia rendida à entrega e ao desempenho dos três, entendendo rápida e eficazmente os momentos de ascese em que Amba passa do sopro sibilante ao vociferar em entrega total, demonstração da sua própria entrega e concepção pessoal acerca da função da música na nossa vida. Não deixa de ser curioso, a mais jovem presença deste festival trazer-nos a herança do período áureo da improvisação no jazz.

A dada altura, ao meu lado, alguém perguntava: “onde é que ela vai buscar aquela força toda?”. O artigo publicado em Setembro de 2022, no The New York Times, foi um dos sinais de alerta sobre uma nova voz no jazz. E a própria Zoh afirmava nesse artigo: “A música é Deus, Deus é a música. De mãos dadas”, dando continuidade à união tão celebrada na década de 60 por músicos cuja grande aspiração era contribuir para um mundo mais harmónico, a partir de uma música que parecia denunciar harmonias apenas aparentes.

]]>
https://branmorrighan.com/2023/08/jazz-em-agosto-2023-de-corpo-e-alma-zoh-amba-trio.html/feed 0
Jazz em Agosto 2023: seis músicos encontram-se num palco… [Trance Map +] https://branmorrighan.com/2023/07/jazz-em-agosto-2023-seis-musicos-encontram-se-num-palco-trance-map.html https://branmorrighan.com/2023/07/jazz-em-agosto-2023-seis-musicos-encontram-se-num-palco-trance-map.html#respond Sun, 30 Jul 2023 10:21:21 +0000 https://branmorrighan.com/?p=25443

Jazz em Agosto 2023: seis músicos encontram-se num palco…

Improvisação radical, com músicos experientes e sapientes. Trance Map +, o sexteto que protagonizou a segunda noite do Jazz em Agosto, na Fundação Calouste Gulbenkian, trouxe diversidade ao programa.

Texto: João Morales

Fotos: Gulbenkian Música – Vera Marmelo

Os membros do sexteto acomodam-se e a primeira coisa que salta à vista é a posição ocupada pelo saxofonista, instrumento habitualmente colocado na linha frontal do palco. Apesar de se tratar de uma figura de nomeada, Evan Parker senta-se ao centro, atrás de todos. O colectivo designa-se Trance Map + e nasceu da junção do histórico inglês (n. 1944), figura seminal do jazz mais arrojado (nos anos 60 do séc. XX integrava o Spontaneous Music Ensemble) com Matt Wright, nome ligado a referências da electro-acústica como Ikue Mori ou Spring Heel Jack (emblemático duo de John Coxon e Ashley Wales, que desafiou várias figuras do jazz, na editora Thirsty Ear). A função de Wright passa, em boa medida, pela apropriação dos sons dos seus parceiros, devolvidos depois de moldados, reintegrados no discurso colectivo. 


A função inicia-se com o famoso sopro contínuo de Evan Parker, no soprano que utilizará toda a noite. É uma serpente que surge norteando o dealbar do percurso, uma serpentina que se desenrola enfeitiçando os ares que nos rodeiam e demonstrando que a dimensão xamânica estará sempre alerta durante uma cerimónia partilhada que se avizinha. Tónica que, aliás, se enquadra perfeitamente na linha programada para este ano pelo curador do festival, Rui Neves.

Entre momentos empolgados e outros devedores da mais dedicada contenção, os ambientes vão-se metamorfoseando, numa cadência contínua – a noite é preenchida com um único tema, sem interrupções – deixando gradualmente comprovadas as palavras da descrição prévia do colectivo, quando se podia ler no programa do festival que esta é uma abordagem desenvolvida «sem sofreguidão, explorando ambientes electro-acústico e sonoridades que vivem fora das grandes artérias, em caminhos pouco iluminados  e percorridos».






Rapidamente entendemos que estamos um momento de criação comunitária, onde cada um dos elementos está atento ao respirar dos restantes, a cada gesto mínimo e as suas consequências, consolidando um manto sonoro partilhado, longe do modelo em que uma base mais previsível e cada solo enunciador se evidenciam. A noite não será de jazz, pensarão os mais afoitos ao cânone ancestral. A noite será de comunhão e improvisação, radical, talvez, mas segura e ponderada, reconhecerão todos.

O segundo sopro que bafeja na noite é Peter Evans, um dos prodígios dos anos mais recentes, figura que também já nos visitou em diversos formatos e ocasiões. Evans, ora espreme o trompete, ora retira dele um frasear lancinante, ora vocifera enquanto toca o seu instrumento (sonoridade sabiamente integrada), ora dedilha com delicadeza e notas quase soletradas. Figura central do mítico quarteto Mostly Other People Do the Killing, Evans é, sem dúvida, um dos maiores trompetistas da sua geração.


Ao lado do já referido Matt Wright, há mais um músico encarregue de valorizar a electrónica, humanizando-a e integrando-a nesta cadência colectiva que se vai propagando, com oscilações entre o eclodir do enxame que zumbe a seis vozes e um amainar das tensões e dos sons, rente ao minimalismo e ao mais rústico metrónomo. Trata-se do veterano Pat Thomas (n. 1960), que ainda em 2022 fez furor neste mesmo festival com o projecto Ahmed, e tem no currículo nomes como Tony Oxley, Lol Coxhill, Steve Beresford Phil Minton ou Roger Turner. Pianista, desde 1989 tornou-se um explorador das novas tecnologias e a forma como utiliza o laptop espelha bem uma alegria contagiante.

Um violoncelo pertinente esteve entregue a Hannah Marshall, figura com ampla experiência no campo da música para teatro e cinema, com interpretação de trabalhos de figuras como Simon Fell, John Butcher, Tim Hodgkinson ou Alex Ward e partilha de palcos com Veryan Weston, John Edwards, Tony Marsh, os já referidos Beresford e Butcher ou, claro, Evan Parker. Mostrou-se muito segura do seu papel nesta nova aventura, sendo responsável por algumas passagens entre a calma e a avalanche, recorrendo ao arco e ao dedilhado consoante a inspiração lhe pedia.


Por último, ao centro do palco, o percussionista, Toma Gouband (n. 1976), uma figura surpreendente e original, que se tem notabilizado por um conjunto de workshops em ambiente académico, sobre polirritmia. Logo a começar pela sua bateria, constituída por um bombo, largo, na horizontal, um prato e um prato choque. Na maioria do tempo, os instrumentos que brandia nas mãos eram pedras, troncos, pinhas, ou um conjunto de ramos com que vergastava a pele do bombo ou os pratos (ou até mesmo sibilando no ar), criando alguns momentos quase hipnóticos pelas opções rítmicas que empregava (sempre calmas e longe de qualquer espectacularidade), mas também pela articulação com a electrónica de Pat Thomas, talvez o músico com que melhor se entrosou, sem nunca abdicar da sua singularidade musical, mais intuitiva e espiritual, do que tecnicamente evidente.

Mesmo quando recorreu a algo semelhante a baquetas, os ritmos adoptados, a forma como ataca a “bateria” e distribui os gestos, confundirá, certamente, os mais clássicos, ainda que encontrando alguns traços hereditários, vindos das experiências de Han Bennink, Roger Turner ou até Max Eastley. Na base da sua abordagem peculiar estará, em grande medida, uma estadia junto dos pigmeus dos Camarões, em 2006, que o levou a reequacionar toda a abordagem ao instrumento (percussão).

Ao longo dos 60 minutos que durou a prestação, sem encores, Evan Parker parou por diversas vezes de tocar, de saxofone em riste, olhos cerrados, escutando, interiorizando o que se passava à sua volta, sem ímpetos de fulgor permanente. Não demorou a percebermos porque, apesar de o sexteto funcionar bem como um todo e Evan Parker se silenciar amiúde, uma boa parte da energia que comandou a noite nascia daquele sax soprano e daquele fôlego inconfundível, mesmo quando calado. Há vozes assim.

]]>
https://branmorrighan.com/2023/07/jazz-em-agosto-2023-seis-musicos-encontram-se-num-palco-trance-map.html/feed 0