Opinião: Biografia Involuntária dos Amantes de João Tordo

Biografia Involuntária dos Amantes

João Tordo

Editora: Alfaguara / Objectiva

Sinopse: Numa estrada adormecida da Galiza, dois homens atropelam um javali. A visão do animal morto na estrada levará um deles — Saldaña Paris, um jovem poeta mexicano de olhos azuis inquietos — a puxar o primeiro fio do novelo da sua vida. Instigado pelas confissões desconjuntadas do poeta, o seu companheiro de viagem — um professor universitário divorciado — irá tentar descobrir o que está por trás da persistente melancolia de Saldaña Paris. 

A viagem de descoberta começa com a leitura de um manuscrito da autoria da ex-mulher do mexicano, Teresa, que morreu há pouco tempo e marcou a vida do poeta como um ferro em brasa. O narrador não poderia adivinhar (porque nunca podemos saber as verdadeiras consequências dos nossos actos) que a leitura desse manuscrito teria o mesmo efeito sobre a sua vida.

As páginas escritas por Teresa revelam a sua adolescência no seio de uma família portuguesa contaminada pela desilusão: um pai ausente e alcoólico, um tio aventureiro e misterioso, uma mãe demasiado protectora. Mas o que ressalta com maior vivacidade daquelas páginas é o relato enternecedor do seu primeiro amor, ao mesmo tempo que começam a insinuar-se na sua vida realidades grotescas e brutais. 

Confrontado pela primeira vez com a suspeita dessa terrível possibilidade, Saldaña Paris mergulha numa depressão profunda. Determinado em libertar o amigo do poder corrosivo do mal, o nosso narrador compõe então, peça a peça, a biografia involuntária dos dois amantes. 

Uma biografia que passa pelo desvelar do passado, para que este não contamine irremediavelmente o futuro.

Opinião: Existe todo um mundo dentro deste Biografia Involuntária dos Amantes. É o sétimo romance de João Tordo, mas o primeiro que me passa pelas mãos, e confesso que demorei algum tempo a digeri-lo, a tentar eu mesma aceitar tudo o que lia, a compreender o que não tinha lido e a tentar depreender o que nunca saberei. Acima de tudo, é uma obra de personagens atormentadas, em conflito com o seu passado e em negação com o seu presente. Existe uma necessidade fervorosa, uma obsessão retumbante em compreender os factos críticos cujas consequências se apresentam agora aos olhos do leitor.

És como um aprendiz de violino: queres aprender e tocar na orquestra ao mesmo tempo.

Obsessão, é essa a palavra-chave deste romance. Pelo menos para mim, para a minha interpretação, para o que me tocou. É certo que cada leitor cria a sua própria imagética do que lê, faz as suas suposições e certamente interpreta à sua própria maneira cada página que percorre. Sem conseguir explicar muito bem porquê, a leitura foi-me revoltando a cada virar de página. Não num mau sentido, mas no sentido em que a história, de si intimamente caótica, me parecia demasiado ordeira. Enquanto percorremos de mão dadas com o narrador, sempre sem nome, os seus desassossegos e os das pessoas que foram entrando na sua vida, assistimos também impávidos e impunes à tentativa de (in)justificar a compulsividade dos seus actos. 

Acho que foi nesse instante que me senti apaixonado por Antonia. Num sentido puramente romântico: não a desejava; não a queria possuir como quisera possuir Débora, sem lhe ver o rosto e porque isso me permitia transgredir, perdendo-me e perdendo a noção de que transgredia. Senti que gostava de Antonia da mesma maneira que gostava de Saldaña Paris, ao intuir que tudo entre nós estava para lá da transgressão; que nada entre nós era refém do capricho ou do desejo.

Sinto que existem tantos pontos por onde pegar, tanto por onde explorar. Temos este professor, narrador, sem nome, separado da mulher e de relação complicada com a filha que quando conhece o jovem poeta Saldaña Paris decide enveredar numa demanda impessoal, em prol do outro, mas que rapidamente se torna na sua razão de respirar. Teresa, a personagem chave e a que mais me atraiu, fosse pela sua adolescência, pela tentativa falhada de emancipação que levou a que toda a sua vida, a partir desse momento crucial, com um único acto, tomasse contornos irremediáveis, vinda de uma família disfuncional e cujo primeiro amor acaba por largar praticamente sem remorsos. 

Tu és estranha.

Eu sei.

Saldaña Paris, que vive na ilusão de que Amor é aquilo que ele sente, que independentemente do que se possa ter passado, propositado ou não, não justifica deixar de amar alguém, que vale até a pena perder a própria vida, por esse… amor. Jaime Toledo, primeiro amor de Teresa, aquele que talvez a conheceu melhor que toda a gente, cujo papel diminuto acaba por ser ingrato. 

Um dia acordamos esquecidos de nós e, no dia seguinte, andamos curvados no passeio à procura de coisas que não existem ou sentamo-nos a falar sozinhos nos cafés; esquecidos de nós e dos outros.

Também é um livro feito de momentos. Momentos esses que os personagens desvalorizam, mas cujo impacto toma contornos irreparáveis, esquinas em que a vida toma outro rumo, muitas vezes assustador. Depois vem o arrependimento, o sentimento de que se devia ter agido de outra forma. Existe toda uma urgência em fechar o passado, em ser empático com o mesmo para se seguir em frente. Mas como o fazer? Até que ponto se deve ir para se conseguir essa redenção e essa paz consigo mesmo?

… O que me fez pensar no seguinte: que toda a ansiedade e angústia desta vida reside no facto de podermos escolher e, portanto, de nunca podermos saber se fizemos a escolha certa ou a escolha errada.

É uma obra diferente, sombria, mas que enaltece a hombridade e o companheirismo, mesmo que juntamente com um sentimento de arrependimento enorme. Com o fechar da narrativa, existe esse concílio, essas tréguas com o que não pode ser mudado e com o que não deve ser trazido para o presente. Muitos vão detestar Teresa, muitos vão ter pena de Saldaña Paris, a maioria nem vai dar conta que o narrador é uma personagem activa, mas na minha memória ficou Jaime Toledo e a história que nunca aconteceu com Teresa. Uma escrita em bruta, honesta, mas funesta a maior parte das vezes. Resumindo:

O problema das palavras não é aquilo que podem ajudar a recordar. É aquilo que podem ajudar a destruir.” 

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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