[Diário de Bordo, Samuel Pimenta] A aldeia

A aldeia

Lá fora, fumegam as chaminés. O ar está tão frio que o fumo parece uma massa espessa que se dobra e redobra, elevando-se vagarosamente, não indo muito além das copas das árvores. Repousa sobre os campos da aldeia, formando uma camada densa como o nevoeiro. A chuva foi embora. Depois de uma semana a chover ininterruptamente, pude ir além dos limites da casa onde estou. O frio não me intimida e aproveitei para explorar mais a aldeia de Pinheiro e as povoações vizinhas. Acordo cedo, durmo em média seis horas por dia, pego na bicicleta e sigo caminho.

Se nos primeiros dias as pessoas estranhavam a minha presença, não é habitual verem estranhos nas ruas, agora já se familiarizaram comigo, sabem quem sou e o que faço aqui. Algumas abordam-me, evocam pessoas da minha família, fazem perguntas. Quando vou ao café, fico muito atento, a ouvir as conversas. São essas conversas que me dão a conhecer mais da aldeia onde nasceram os meus ancestrais.

Pinheiro é uma aldeia típica do Planalto Beirão. Fica entre duas serras, a da Estrela e a do Caramulo, as casas são feitas de pedra, está rodeada por florestas de pinheiros, carvalhos e eucaliptos, é abundante em água, que corre em ribeiras, regatos, rios e enche as minas e os poços, e alimenta-se daquilo que a terra e o gado oferecem. Por estarem tão dependentes dos recursos da natureza, os habitantes de Pinheiro são muito sensíveis ao impacto da poluição sobre as águas ou dos fogos sobre as florestas. Não existem serviços e a distância das grandes cidades, onde os serviços abundam, é uma limitação. A oferta de emprego é muito reduzida na região e as elites esforçam-se por acentuar ainda mais o fosso que as separa do resto da população. É por isso que as gentes daqui estão familiarizadas com a necessidade de partir em busca de uma vida melhor. Há filhos da terra no Brasil, na Suíça, em França e até nos Estados Unidos da América, o que justifica o abandono e a ruína de muitas casas da aldeia. Ainda assim, a aldeia tem vida, tem gente.

Olho para os habitantes de Pinheiro como se estivessem muito próximos da condição dos elementos da natureza, como se vivessem segundo as leis de uma outra linha do tempo, mais lenta, mais rigorosa, mas também mais apaziguadora, desprovida do que é supérfluo. Diria que vivem ao ritmo do crescimento das árvores e das pedras, pois conhecem o valor da espera, necessária para que cresça o fruto na planta ou o cristal na rocha. Conhecem os ciclos da Terra. E esse conhecimento não é recente, é um pacto selado nos primórdios da ocupação deste território, remonta aos cultos pagãos. Isso explica os mitos que tenho vindo a ouvir desde que aqui estou, e outros que me foram passados pelo meu tio António, que contava histórias como ninguém, onde se fala de moiras encantadas a viver dentro das rochas, de aparições e penedos sagrados, de espíritos, demónios, bruxas e lobisomens a vaguear pelas sombras das casas e das árvores.

Aldeias como esta são portais raros para uma das dimensões que mais me fascina, a imaginação. Estar aqui é como pisar um território fronteiriço entre o mundo físico e o limiar do mundo mitológico e da fantasia, onde os humanos, procurando uma fuga para o peso da sua vida terrena e dual, convivem de perto com criaturas fantásticas que dão sinal do caminho do meio, da terceira escolha entre o bem e o mal, o caminho da virtude que a natureza, por ser neutra, tão bem conhece.

Pinheiro (Carregal do Sal), 16 de Janeiro de 2016 – 18h06m

Samuel Pimenta

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