DIÁRIO DE BORDO DA BATERIA NA INDONÉSIA #2 – Saya orang portugis

Acordei às seis da manhã no hotel Putra Jaya, fresco que nem uma alface, em Yogyakarta! Também é verdade que no dia antes me tinha deitado às cinco e meia da tarde… Quando saí do quarto estava o sol a nascer. Sentei-me numa das cadeiras da varanda, que dava acesso aos restantes quartos, e pus-me a ler um livro chamado Everyday Indonesian, que aborda alguns princípios rudimentares da Língua Indonésia (Bahasa Indonesia) e alguns aspectos culturais que são essenciais para se viver por cá, dada a credibilidade que se deve reconhecer a uma visão norte-americana semelhante à do seu autor.

Ora, estava eu descansadinho, quando me aparece um indonésio com uma vassoura na mão! Disse-me logo uma série de coisas que, nem querendo muito (que até queria), conseguia perceber. Fui simpático, sorri, arredei o sofá para que ele pudesse varrer, e lá percebi que me estava a perguntar o nome. “Saia Sadar, dan kamu?” Ao que eu retorqui “Saia João“, muito antes de fazer ideia de que por cá as “sayas” levavam “y”. Continuou ele a dizer mais uma panóplia de coisas, às quais respondia com sorrisos e um menear de quem não estava a perceber nada, até que identifiquei um “empat puluh“. Ou seja, “quarenta”, tal como toda a gente sabe! Como apontou para mim, disse-lhe logo “Saia dua puluh lima“, que é como quem diz “eu tenho vinte e cinco”, mas sem “y”, obviamente. E lá apareceu o Miguel, que começou a falar com o senhor Sadar naquela língua que aparentemente só a mim e aos restantes estrangeiros era estranha. Ainda que a situação não tenha jeito nenhum, o nome do senhor até tem a sua piada. É que Sadar quer dizer “ter consciência”, ou “aperceber-se de”. Mas tenho cá para mim que ele não tinha lá grande consciência de que eu belum bisa berbahasa indonesia – literalmente, ainda não consigo falar indonésio. Ironias à parte, um abraço para o Sadar!

Fomos dar uma volta, para ver se encontrávamos uma casa para arrendar e alguma coisa para comer. Por não perceber as pessoas, apercebi-me de que as ruas de cá até falam bastante. Até ver, ainda são o que mais me dá informação real acerca da indonésia. Andámos bastante. Muito, até. Tal e qual como quem ainda não tem uma mota ou uma bicicleta. Por cá, as ruas são uma salganhada de informações: publicidades a tabaqueiras e a operadoras de comunicações, oficinas, lojas de tudo-e-mais-alguma-coisa, restaurantes nos passeios, pessoas com muita pressa, pessoas sem pressa nenhuma, e estrangeiros, como nós. O Miguel ia-me tentando explicar o que é que se ia passando, saudando ou recusando as ofertas dos becak – táxis de bicicleta com um banco corrido para duas pessoas na dianteira – sempre naquela língua.

Chegámos a um local onde se vendia lotek – uma comida vegetariana cheia de coisas que ainda não consigo nomear nem identificar na totalidade. A senhora que lá estava era a cozinheira e única responsável por um restaurante que consistia em dois bancos corridos, uma mesa, uma bancada onde cozinhava e um toldo por cima. Olhou para o Miguel com bastante atenção, e do alarido que começou a fazer só percebi “Miguel, ya!” e uma série de gestos que diziam, sem sombra de dúvida, “que é do teu cabelo?”. No fundo, armou-se logo ali uma grande festa à borda de uma espécie de Estrada Nacional N.º 1! Pude verificar, efectivamente, que sete anos antes tinha vindo para aqui um português estudar gamelão, pois para além do seu nome ainda percebia a palavra “Portugal” no emaranhado do contínuo sonoro em que se dirigiam um ao outro.

Apareceu então o Lukas, que ainda só conhecia enquanto perfil de redes sociais. Um ou dois dias depois, o nosso amigo Lukas, pediu-me para ir com ele buscar o seu volkswagen carocha, amarelo – sim, ele tem um carro; ganhou-o num sorteio numa feira de tecidos. Saímos na sua mota, passámos por umas quantas ruas iguais a tantas outras, com bancas e esteiras nos passeios, nas quais se vende fruta, pneus, móveis, comida, computadores, e tudo o mais que se possa procurar. Quando já estava perdido, chegámos à oficina. Esperei um pouco, e lá veio ele com o seu carocha amarelo. Abriu o vidro e disse-me, “ikut saya!”, ou seja, “segue-me!” – é verdade, neste momento o meu aprofundado conhecimento de Indonésio já me permite saber que “saya” leva “y”. Deixámos a oficina e percorremos umas quantas ruas, sempre estreitas e cheias de carros, carrinhas de caixa aberta e motas a dar com um pau, que umas vezes rasgavam arrozais, e outras serviam de átrio para as inúmeras lojas dos passeios.

E lá ia o volkswagen carocha amarelo em grande estilo! Sem que nada o fizesse prever, vi saltar uma peça, e a roda traseira do lado direito a ganhar um certo tipo de independência, que lhe permitiu separar-se do eixo e andar sozinha pela direcção que mais lhe apeteceu. Parecia um filme em câmara lenta: um carocha amarelo a andar em três rodas, e uma roda a andar sozinha em contramão, cada qual com o seu próprio destino! Depois voltou tudo ao normal. O carocha lá assentou no chão, e continuou a arrastar-se durante uns bons quinze metros. A roda mais autónoma girou tudo quanto pôde, atravessou a estrada por entre um autêntico formigueiro de motas, desviou-se de uns gajos que estavam sentados num banco corrido, bateu na parede de uma casa, e saltou tal e qual como um géiser, para grande espanto das duas senhoras e de um garoto que estavam sentados a cerca de dois metros do sítio em que bateu.

Parei logo a mota e fui ter com o Lukas, que por ter aprendido português com o miguel saiu do carro a exclamar “carro do caralho!”, com a mais perfeita entoação idiomática! De facto, a única diferença que pude identificar foi que a sua desolação era acompanhada por uma enorme descontracção e não pelo costumeiro acesso raiva. Foi buscar um macaco a um sítio qualquer, e lá tentámos colocar a roda no eixo. Entretanto os donos da casa vieram averiguar o aparato, e apareceu um mecânico a que o Lukas tinha telefonado. Ao fim de bastante tempo lá conseguimos trancar a roda com um prego dobrado, e estacionar o carro num outro local, seguindo um hábito bastante português, uma vez que se tivesse ficado no meio das duas vias nunca estorvaria ao anormal funcionamento da estrada. No meio disto tudo o garoto não parava de olhar para mim, a senhora mais velha também não, a senhora mais nova fazia o mesmo, e um senhor mais velho teve que perguntar ao Lukas de onde é que era o estrangeiro. Mal o Lukas lhe disse “de Portugal”, tive eu o meu primeiro arraial à borda da Nacional N.º 1, com sorrisos, repetições constantes das palavras “Portugal” e “portuguis”, e ainda um garoto a dizer “Cristiano Ronaldo, Cristiano Ronaldo!”.

Enquanto tudo isto – e muito mais! – aconteceu, ainda não se tinha passado uma semana desde que tinha chegado à Indonésia. Garantidamente, é melhor ser um português na Indonésia do que um english man in New York.

João Gândara, Bateria


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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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