DIÁRIO DE BORDO DA BATERIA NA INDONÉSIA #3 – A Especial Região de Yogyakarta.

#3 – A Especial Região de Yogyakarta.

É certo e sabido que escrever não é tarefa fácil. Os constrangimentos à escrita específicos da Indonésia, por sua vez, já não são assim tão conhecidos. Ainda há pouco, estava o Miguel a escrever ali em cima do banco corrido do nosso alpendre, com uma caneca de água à frente, quando cai um cicak (leia-se ‘tchi-tchák‘) em cheio na caneca! Os cicak são umas sardaniscas cantarolantes, que vivem nas paredes e tectos dos interiores e exteriores das casas de cá, enquanto vão cantando o seu próprio nome. Nunca perdem a aderência, mas às vezes caem. Acontece que no quotidiano dos tectos e das paredes, às vezes os cicak também têm aqueles espasmos típicos da intimidade – são bichos! A folha estava quase passada a limpo, mas lá teve que se passar a limpo outra vez…

As variedades na Daerah Istimewa Yogyakarta (Região Especial de Yogyakarta) vão assim surgindo inesperadamente. E os trocadilhos com iogurtes acabam por nem ter piada, porque pela Indonésia fora toda a gente diz “Djogdjakarta”, e no próprio Sultanato de Yogyakarta só se diz Ngayogyokarto Hadiningrat. Yogyakarta é a capital de uma região especial com o seu próprio nome, na ilha mais povoada do mundo – Java. Para além de nos ter cá, também é especial por ser a única zona governada por um Sultanato com a idade das descobertas portuguesas. É conhecida como o centro das artes tradicionais javanesas, tal como se vê por todo o lado. Tem uma programação cultural que nunca mais acaba, com concertos ou ensaios de gamelão, leituras de poesia javanesa, danças tradicionais e contemporâneas, teatros de sombras e espectáculos de marionetas, um pouco por todo o lado e a toda a hora, e está carregada de pinturas nas mais variadas paredes e muros. De nossa casa, ouvem-se gongos que tanto estão a cinquenta como mil metros de distância, praticamente todas as noites. É uma região tão especial que em pouco mais de sete anos viu a sua população a aumentar cerca de dez vezes, mas que continua a ser uma cidade pequenina com mais de três milhões de habitantes.

Na nossa universidade – Institut Seni Indonesia (Instituto Indonésio das Artes) – todos os dias há ensaios, concertos, teatros, danças e outros espectáculos, tanto de dia como de noite. A Fakultas Seni Pertunjukan(Faculdade das Artes do Espectáculo) tem departamentos específicos para Tari, Dalang e Karawitan, e um peculiaríssimo departamento de Etnomusikologi. Em Indonésio a dança tem dois nomes, Dansa e Tari. Dansa, tal como se vê, é uma palavra portuguesa, mas que cá só se utiliza para aquelas danças “agarradinhas” dos bailaricos dos arraiais, porque Tari é a palavra que se utiliza para as danças tradicionais, que normalmente consistem nas coreografias de grupo que os dançarinos começam a estudar antes de entrar para a escola. O Dalang é o sujeito que fica atrás do pano branco e à frente da lamparina nos teatros de sombras, a manusear as marionetas, a declamar os diálogos e monólogos, a narrar a acção da história, mas que como tem muito pouco para fazer, ainda dá as indicações das entradas e dinâmicas à orquestra de gamelão com um utensílio que percute com um dos pés, enquanto segura uma personagem em cada uma das mãos. Embora Karawitan seja a palavra que designa toda a forma de expressão musical original, produzida pelas culturas nativas do arquipélago da Indonésia, tanto por recurso a instrumentos como vozes e outras formas de produção sonora (porque bater palmas também conta!), que englobem um sistema melódico, rítmico e harmónico autóctone – ou seja, é a expressão que designa a “música de cá” – a actividade do departamento centra-se na música de gamelão, e sem qualquer tipo de problema, visto que os restantes conjuntos orquestrais da Indonésia se estudam de forma aprofundada no departamento de Etnomusikologi, tanto nas suas vertentes práticas como teóricas.

Para pôr em cena todas estas formas artísticas, utiliza-se um edifício extremamente emblemático. O Pendapa (leia-se ‘pêndópó‘) é uma estrutura arquitectónica tipicamente javanesa concebida com o intuito primordial de albergar cerimónias rituais. Há vestígios de Pendapas que remontam ao século IX, e evidências de que com o passar dos tempos se tenha tornado na estrutura predilecta para realizar as mais diversas actividades sociais, culturais e até mesmo industriais (como armazém, etc…), vindo por fim a tornar-se na fachada das típicas casas javanesas. Actualmente assume um papel fundamental enquanto palco para concertos e ensaios de gamelão, danças, peças de Wayang Kulit (teatro de sombras com marionetas recortadas em couro), Wayang Golek (marionetas articuladas que imitam os movimentos das danças tradicionais) ou Wayang Wong (peças de teatro estilizadas que se baseiam nas restantes formas de Wayang).

Mas como a cultura não enche barrigas, há que falar de desporto. Há dias fui almoçar a um burjo, um tipo de estabelecimento que costuma estar aberto durante 24 horas, no qual, em tempos que já lá vão, segundo me disseram, havia sempre um cozinhado pronto a servir chamado bubur kacang hijau. Como este burjo até tinha uma televisão, na altura estava a dar um jogo entre a Indonésia e a Malásia, que parecia ser de futebol, a avaliar pelo campo e pela presença de balizas. Enquanto comia um nasi goreng telur – ou se preferirem ‘arroz frito com ovo’ – os cicaks iam comendo mosquitos, volta e meia apareciam uns tikus a passar apressadamente nas traves do telhado – acho que perceberam o que era, e não vou traduzir para não influenciar as tendências turísticas – e havia três ou quatro clientes que se iam rindo do jogo, com o mesmo entusiasmo dos espectadores dos malucos do riso. O ambiente do interior contrastava abruptamente com a emoção da rua. Este burjo fica na Jalan Parangtritis, a Estrada Nacional N.º 1 que agora fica mais perto de nossa casa, mas que tal como qualquer uma das outras estradas de cá se pode considerar uma verdadeira Estrada Olímpica. Embora o badminton seja o desporto nacional da Indonésia, é na estrada que toda a gente pratica os desportos mais populares. De todas as modalidades que conheci até agora, há duas de que gosto particularmente, não só porque se praticam em toda e qualquer estrada, mas acima de tudo pela destreza e sangue frio que os concorrentes demonstram. Ainda ninguém lhes deu nome porque são uma espécie de jogos populares, que se aprendem por cá tal como em Portugal se aprendia a jogar ao pião ou ao berlinde. Mas não me pude conter, e tive que lhes atribuir designações – em indonésio, obviamente! – porque assistir a tais proezas… é pura adrenalina!

A primeira é uma Maraton Rintangan (Maratona de Obstáculos) e consiste num percurso todo-o-terreno de transporte de mercadorias. Apesar da minha curta experiência nas estradas indonésias, já percebi que por cá a Regra Geral de Cedência de Prioridade do Código da Estrada deve ter uma redacção muito semelhante àquela de “avance o mais destemido”, que a malta leva ainda mais à letra. Há efectivamente boa vontade, e um estado de espírito que se faz sentir: ninguém quer bater! Esta modalidade é tão inesperada quanto surpreendente, uma vez que tanto nos podemos deparar com uma banca de um restaurante com rodas de bicicleta a ser puxada à mão ou atrelada a uma motorizada, ou com uma scooter com oito garrafões de dezanove litros de água potável cada um. Durante o trajecto que se pretende realizar tanto se pode ultrapassar pela direita como pela esquerda, mas nunca se sabe se aparece alguém em contramão, um monte de pneus com uma mota por baixo, ou até um carro a ultrapassar uma mota que está a ultrapassar uma carroça que por sua vez está a ultrapassar uma bicicleta que se vinha a desviar de um camião que estava a ser ultrapassado por um autocarro. A prova ainda é acompanhada por uma sinfonia constante de buzinas, orquestrada à moda de um gamelão tipicamente javanês. É uma exibição ímpar de pura destreza técnica! Mas para quem ainda não encontre aqui emoção suficiente, lanço o desafio de experimentar levar com um espelho num braço logo nos primeiros ‘quinhentos metros em contramão’ – a prova que se segue.

A segunda modalidade é a dos Lima Ratus Meter Melawan Arah, e é uma das minhas provas favoritas. Por cá conduz-se pela esquerda, mas não como se faz em Inglaterra. Ora, quando num qualquer entroncamento se pretende virar à direita, pode-se iniciar o tal percurso de lima ratus meter melawan arah ao virar logo à direita, para depois percorrer a distância necessária para retomar a faixa de rodagem contrária. A distância a percorrer varia sempre entre os cinquenta e os quinhentos metros, e não há sinais de partida, pelo que qualquer atleta pode começar a sua prestação individual assim que esteja pronto, ou até mesmo sem estar pronto, visto que a prova não é cronometrada. É uma prova sem categorias, na qual concorrem crianças e velhos, homens e mulheres, em grupo ou individualmente, em motas com e sem mercadorias, bicicletas, carros, e todo e qualquer outro tipo de veículo, motorizado ou não – os carros de bois também estão homologados! Estes lima ratus meter melawan arah praticam-se tanto em aldeias como em cidades, e percorrem-se em bermas, valetas, passeios, lojas e até restaurantes – vale tudo!

Há outras modalidades, e só não as vou descrever porque ainda não lhes consegui atribuir nomes em Indonésio. Mas como podem ver, tal como comecei por dizer no início deste texto, escrever na Indonésia não é fácil. Há demasiada emoção em todo o lado!

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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