Opinião: Ensina-me a Voar Sobre os Telhados, de João Tordo

Ensina-me a Voar Sobre os Telhados

João Tordo

Editora: Companhia das Letras

Sinopse: Japão, 1917. Por desonrar o nome da família, o jovem Katsuro é exilado pelo seu próprio pai, um poderoso governador, num ilhéu inóspito. Abandonado, o rapaz irá deparar-se, pela primeira vez, com o terrível segredo da família Tsukuda, enquanto luta para sobreviver à fome, à sede e à culpa. Lisboa, cem anos depois. No Liceu Camões, um dos mais antigos da cidade, um professor de Geografia suicida-se numa sala de aula. O nosso narrador, funcionário do liceu e alcoólico em recuperação, decide inaugurar uma reunião semanal para ajudar os colegas a superar o choque. Numa noite de Inverno, um misterioso desconhecido aparece no encontro. É japonês e chama-se Tsukuda. O seu estranho comportamento desperta no narrador um fascínio doentio. Ambos são perseguidos pelo passado, ambos desejam o impossível. Algures entre o sonho e a mais pura realidade, “Ensina-me a Voar Sobre os Telhados” é um lugar onde um pai e um filho aprendem a amar-se, é um espaço onde se procura aceitar dores antigas e abraçar a fragilidade humana. Um romance que é uma elegia à beleza imperfeita da vida.

OPINIÃO: No Verão de 2017 estive a viver no Japão enquanto investigadora científica convidada na Universidade de Kyushu, em Fukuoka. As pessoas ficam sempre muito espantadas quando digo que não gostei da experiência. Gostei das paisagens, gostei de alguns locais que visitei (como não adorar dar festinhas a veados em pleno parque da cidade ou estar em pequenas ilhas que parecem tiradas de um imaginário mágico e místico?), mas a sensação que se manteve sempre à flor da pele foi a de uma frieza emocional e de alguma loucura repelente. Quando li a sinopse de Ensina-me a Voar Sobre os Telhados senti um misto de emoções. Primeiro, porque tudo o que envolva o Japão e algum tipo de embelezamento romântico me deixa de pé atrás, depois porque tudo aquilo que de alguma maneira nos marca acaba por nos atrair sempre com uma espécie de fascínio retorcido. Foi neste estado de espírito, cauteloso, que avancei para este livro que se veio a tornar numa obsessão. 

Engraçado que é precisamente este o grande tema, digo eu para mim mesma, desta obra – a obsessão. Seja obsessão por um qualquer vício (perdoem-me o pleonasmo), estado de espírito, tema ou pessoa. Cheguei a uma altura da leitura, principalmente no último terço do livro, em que dava por mim a querer que o dia terminasse para que finalmente pudesse retomá-la. Não é dos romances mais fáceis de ler, mas é certamente daqueles em que o desafio se torna numa espécie de concretização, qual amante nas sombras à espera do seu par. São percorridos vários locais e espaços temporais diferentes. Japão, Portugal, presente, passado, gerações que se cruzam de forma inteligente e perspicaz, prendendo o leitor e surpreendendo-o. Muitas vezes tive a sensação de estar a ler histórias dentro de histórias para a seu tempo João Tordo nos dar a cereja no topo do bolo e de alguma maneira pacificar a nossa constante inquietação. 

Sim, este é um livro que nos inquieta, que nos revolve, que nos faz questionar não só a nossa postura na vida e a nossa personalidade como também as nossas crenças. A grande proeza em Ensina-me a Voar Sobre os Telhados é a forma como o escritor português consegue transmitir todos os acontecimentos de forma tão intrigante e eloquente, mesmo quando entramos em terrenos sensíveis. Nesta narrativa, o quotidiano e o corriqueiro contrastam com uma espécie de mitologia de que nos atrai e comove, tendo esta mistura como efeito um certo deslumbramento pela própria melancolia na qual o enredo está fortemente embebido. Tanto o narrador como Tsukuda são, sem dúvida, dois protagonistas de excelência, mas foi Katsuro e Saburo que mais mexeram comigo, talvez pela violência inerente às suas existências que se vê reflectida agora em Tsukuda. Ah! E Ludmila, a querida Ludmila, a personagem feminina que tem um papel singelo, mas que faz toda a diferença, e um dos capítulos mais bonitos do romance. 

João Tordo teve a capacidade de criar inúmeras personagens e de as orquestrar numa trama complexa, porém também sublime. A sua escrita inteligente, aliada à sua capacidade descritiva que nos transporta directamente para os cenários que descreve, mostra-se a nossa grande aliada nesta epopeia pelos escombros emocionais do ser humano. O pontapé de saída é dado por um suicídio que se torna a razão pela qual o nosso narrador se cruza com Tsukuda, mas muito mais é explorado. Aliás, o tema do romance não é de todo inocente e reflecte precisamente uma espécie de vazio que necessita ser conquistado para que uma pessoa possa assim levitar e “voar sobre os telhados”. Uma coisa eu sei, certamente tão cedo não esquecerei algumas das passagens, seja porque visualmente se tornaram tão reais em mim, seja porque emocionalmente houve uma espécie de espelho que por vezes me apanhou desprevenida. Com Ensina-me a Voar Sobre os Telhados, João Tordo acrescenta ainda mais profundidade a uma bibliografia admirável. 

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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