Recensão: Sonhos Eléctricos, de Philip K. Dick

Sonhos Eléctricos – Volume Um

Philip K. Dick (tradução de Helena Briga Nogueira e Paulo Faria)

Relógio D’Água

216 págs

17 euros

por João Morales

As notas de introdução a estes contos, escritas pelos diferentes guionistas que adaptaram cada um deles a episódios da série transmitida na Amazon Prime, são unânimes ao realçarem a clarividência de um dos maiores autores de Ficção Científica, que se apoiou no género para levar muito mais longe a sua demanda literária e filosófica, pois, como escreve Jack Thorne sobre “O Passageiro”, «como sempre na obra de PKD o conto acaba por levantar questões profundas sobre aquilo que queremos enquanto seres humanos. E sobre aquilo que devíamos obter».

O conto de abertura, “Peça de Exposição”, transporta-nos para uma exposição sobre o século XX, estreitando relações entre as duas épocas e questionando as fronteiras espácio-temporais, bem como a dimensão estanque da realidade. PKD cruza ideias com Jorge Luis Borges ou com preceitos antigos da filosofia oriental: «Nos sonhos, as pessoas estão sempre em segurança até o sonhador acordar».

Já referido, “O Passageiro”, volta a questionar a possível influência do presente sobre actos e factos remetidos para um passado com identidade própria, através da alusão continuada por vários personagens a uma localidade que parece não existir.

No conto “O Planeta Possível” surge um termo que se repetirá amiúde, fruto das opções de tradução mas nem por isso menos elucidativo de um certo contexto mental: «estava acompanhado por um robiçal, um enorme robô-serviçal, que a amparava com o braço». Novamente em cima da mesa, a cegueira inerente à espécie humana, vislumbrada muitos anos antes de ser tão debatida universalmente pelas suas escolhas ecológicas, economicistas e industriais. 

Um corpo suspenso, enforcado, à vista de todos, pode ser objecto da maior indiferença? Não só a resposta é afirmativa, como essa cena inaudita é o ponto de arranque para uma conspiração maquiavélica em torno da aniquilação da raça humana. Magnífico ritmo e toda dimensão metafórica de PKD a evidenciar-se. 

“O pai-coisa” é uma história de criaturas e elementos de horror, passada em família. Com “O fabricante de capuzes” regressa toda a denúncia ideológica que PKD tantas vezes esgrimiu, mesmo em narrativas que só anos depois foram olhadas com a perspicácia necessária para ultrapassarem a condição de mero entretenimento. Um capuz. E as personagens questionam: «o que tem ele a esconder (…) porque tem medo da sonda?». A resposta é ainda mais surpreendente: «um homem inocente não tem motivos para esconder os seus pensamentos». Como saída, o autor coloca o confronto entre o totalitarismo e os ideais libertários na voz dos personagens: «Quem devia então guiar a humanidade?, perguntou Franklin.  Quem devem ser os líderes? Ninguém. A humanidade deve guiar-se a si própria».

“Foster estás morto” é uma história que nasce no caldo da Guerra Fria e das ameaças constantes de um Armagedão nuclear, pilares de equilíbrio entre facções assumidamente opostas e que dividiram o mundo em dois blocos antagónicos, de forma dura e crua, mas, pelo menos, explícita. 

Resumindo: um conjunto de histórias em que PKD agrupa diversas das suas temáticas, aplicando uma técnica narrativa sagaz que permite a leitores menos atentos fruírem de uma história de aventuras, com as características da Ficção Científica sempre em primeiro plano. Contudo, quem se detenha com um pouco mais de acuidade e aprofunde a simbologia e a metaforização das circunstâncias, rapidamente se depara com relatos de grande rigor antropológico, inseridos numa lógica civilizacional que privilegia a crítica e a denúncia. PKH é um autor sobejamente politizado, apesar de poucas vezes isso ser referido, até porque, politizado não significa, forçosamente, partidarizado. Um livro para vários tipos de leitores e de enorme riqueza.

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    Olá a todos, sejam muito bem-vindos! O meu nome é Sofia Teixeira e sou a autora do BranMorrighan, o meu blogue pessoal criado a 13 de Dezembro de 2008.

    O nome tem origens no fantástico e na mitologia celta. Bran, o abençoado, e Morrighan, a deusa da guerra, têm sido os símbolos desta aventura com mais de uma década, ambos representados por um corvo.

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